Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Croché das coisas...
(Bernardo Soares, Livro do desassossego)


Ensaio sobre a cegueira

Eram 7 horas quando soou o despertador. A hora habitual. Peguei nele desconfiada e de mau humor, como de costume. Que mania de me acordar tão cedo! Lá me resignei à ideia de me levantar e virei-me na cama. Sentei-me, calcei os chinelos e levantei-me. AHHHHHHHH... e o som estrondoso do corpo que cai!

Ainda meia atordoada, perplexa, assustada, senti a cama a dois metros acima de mim. Senti o meu corpo em contacto com uma superfície dura e fria. O chão da casa, presumi. Inspeccionei os pés... nada. As pernas... nada. A barriga, o peito, os braços... nada estava diferente. Oh não! As costas... as minhas asas?! Levantei-me e pus-me aos saltos. Vá lá, mexam-se! Vá lá!

Consegui alcançar o telefone. Liguei. Do outro lado, com uma voz fria e abafada, perguntaram-me se tinha sido assim de repente. Sim, foi assim de repente. Então, não há nada a fazer?! Não há nada a fazer!... Sentei-me no chão, aterrorizada.

Marquei o teu número. Como é que eu vou subir ao andar de cima? Como é que eu vou sair de casa? Como é que eu vou viver? Se ao menos, as ruas fossem revestidas por um pavimento... Que disparate! Mas então se nós voamos, para que precisamos de chão na rua?! Disseste-me. Pois, mas agora dava-me jeito...

E assim, de um momento para o outro, passei a ser considerada inapta para trabalhar na cidade flutuante. O estado dá-me um subsídio para sobreviver e, de vez em quando, alguém me vem buscar para ir dar um passeio. Eu agradeço!

Na verdade, o que eu queria era que não me tocasses com esse sentimento de pena e não me tivesses deixado. O que eu queria mesmo era que não me chamassem deficiente só porque esta cidade não tem um chão por onde eu possa andar. Sim, porque eu consigo andar, consigo mexer-me de um lado para o outro, desde que tenha um chão! Eles insistem que não tenho asas. As minhas mãos fazem tudo como antes, desde que consiga chegar às coisas. Eles insistem que não tenho asas. Não deixei de saber o que sabia, não deixei de ser quem era. Mas eles insistem que não tenho asas!

Agora, o despertador já não toca.

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