Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Croché das coisas...
(Bernardo Soares, Livro do desassossego)


Fascinante!

Vinha no carro a ouvir Petra Haden e deu-me uma enorme vontade de cantar. Nada me impediu, nem mesmo um sentimento de vergonha, já que eu própria era a minha única companhia. Comecei a trautear, a fazer as entoações e as variações. Para uma leiga na arte do canto até nem me saí nada mal!

De repente, dei comigo a pensar... Como é que o meu cérebro sabe como distender e relaxar as minhas cordas vocais, em que posição as colocar exactamente para que, ao passar o ar, vibrem e produzam aquele tom e só aquele; para depois, muito repentinamente, mudar para outro e para outro e para outro.

Tentei imaginar o trajecto neuronal para que isto acontecesse, as milhares de sinapses envolvidas. Será que o meu cérebro evocou "representações disposicionais" (vulgarmente conhecidas por memória), que foi armazenando ao longo dos tempos, enquanto ouvia música? Ou será que, antes pelo contrário, se limitou a reproduzir com algum grau de semelhança, a pedido de uma outra parte do meu cérebro, a informação que estava nesse mesmo momento a chegar aos córtices sensoriais iniciais (basicamente, aquilo que primeiro processa a informação vinda do exterior)? Será que não fez nada disto ou será fez uma mistura de ambos e por isso é que eu acho que até nem me saí nada mal? É que, para dizer a verdade, eu já conhecia a música, já a tinha ouvido várias vezes. Mas se, neste preciso momento, a tentar trautear de novo, enquanto não a ouço, não sai nada que seja sequer parecido!

Fosse qual fosse o processo, não deixa de ser fascinante imaginar os quilómetros de axónios que foram accionados e a rapidez com que deram resposta. Imaginar o tumulto que aqui vai quando recebemos informação, quando a modificamos ao longo dos nosso próprios circuitos neuronais e a damos de volta ao mundo exterior. Uma informação que pode, à partida não parecer diferente, mas que já foi sujeita a trajectos e a processos muito próprios de cada um. E é fascinante como a única coisa que foi consciente em todo o processo foi a vontade de cantar.

Deliciem-se a entoar!


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