Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Croché das coisas...
(Bernardo Soares, Livro do desassossego)


Intersecções

"Um incidente trivial; vivê-lo, um heroísmo trivial. A. tem um importante negócio a concluir com B. da aldeia vizinha H. Vai até H. para combinar o encontro, faz o caminho de ida e volta em dez minutos para cada lado e em casa ufana-se da sua grande rapidez. No dia seguinte volta a H., desta vez para fechar definitivamente o negócio; uma vez que este previsivelmente demorará várias horas, A. parte de casa manhãzinha cedo; apesar de todas as circunstâncias, pelo menos na opinião de A., serem exactamente as mesmas do dia anterior, desta vez precisa de dez horas para chegar a H. Quando aí chega, à noite e já sem forças, dizem-lhe que B., zangado com a demora de A., partira há mais de meia hora para a aldeia de A.; na verdade, ter-se-ão certamente cruzado um com o outro. Aconselham A. a esperar, B. já deve estar a voltar. Mas A., receando pelo negócio, põe-se logo a caminho e apressa-se a voltar para casa. Desta vez, e sem sequer dar conta disso, faz o caminho de regresso num abrir e fechar de olhos. Já em casa dizem-lhe que B. tinha chegado muito cedo, ainda antes de A. partir, sim, tinha até encontrado A. junto ao portão da casa, tinha-lhe lembrado o negócio, mas A. tinha respondido que agora não tinha tempo, que tinha de se apressar. Apesar deste comportamento incompreensível de A., B. tinha ainda assim ficado para esperar por A. Perguntara até várias vezes se A. tinha já voltado, mas estava ainda lá em cima no quarto de A. Contente por ainda poder falar com B. e esclarecer tudo, A. sobe as escadas a correr. Já está quase lá em cima quando tropeça, torce o pé e, quase a desmaiar de dor, incapaz até de gritar, gemendo apenas no escuro, ouve e vê B., sem perceber se estaria muito longe ou mesmo ao lado, que desce as escadas furioso e desaparece para sempre."


(in Contos, Franz Kafka)

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